quinta-feira, 10 de setembro de 2009

"A ESTRELA SOBE": MAS A QUE PREÇO?

Obra-prima de Marques Rebelo ganha reedição pela José Olympio

Henrique Marques-Samyn*, Jornal do Brasil
RIO - Primeira das obras de Marques Rebelo reeditada pela José Olympio, A estrela sobe retorna às prateleiras 70 depois de sua publicação original. Nome literário de Edi Dias da Cruz – que adotou o pseudônimo para proteger a família após os ataques contra os modernistas na Semana de Arte Moderna – Marques Rebelo passou por um longo período de esquecimento, embora tenha sido um dos mais importantes autores da literatura brasileira de meados do século passado. Para ter uma ideia dessa notoriedade, basta ler o que Fernando Sabino escreveu em O tabuleiro de damas: “A passagem de Marques Rebelo por Belo Horizonte representou para mim verdadeiro acontecimento, como se lá tivesse descido um disco voador (inexistentes, até então)”. O esquecimento a que o escritor foi relegado talvez se deva à língua ferina que o levou a cultivar inúmeras inimizades. Em plena Academia Brasileira de Letras, em resposta ao discurso de posse de Marques Rebelo, Aurélio Buarque de Holanda referiu-se à “maledicência rebeliana”: “Homem sois de língua afiada”; Drummond, numa crônica, qualificou o escritor como um “diabo miudinho” (isso, contudo, talvez soasse como um elogio aos ouvidos de Rebelo, fiel torcedor do America).
Nascida na Saúde
Como observa o crítico Luís Bueno, A estrela sobe foi recebido logo de saída como a obra-prima daquele que era então considerado o maior contista brasileiro vivo, e teve reedições constantes. O romance narra a história de Leniza Máier, jovem nascida no bairro da Saúde, que sonha ser cantora de rádio. Embora pobre, filha de um relojoeiro descendente de alemães e de uma “mestiça disfarçada”, Leniza é ambiciosa; dotada de algum talento, tem atributos que mais podem ajudá-la a alcançar seus objetivos: grandes olhos castanhos, seios redondos que desafiam decotes, belas coxas morenas. A princípio, ela ainda acredita que pode vencer graças aos seus dotes musicais; contudo, num mundo em que os homens dão as cartas, é o corpo que aos poucos se torna sua chave para o sucesso. Quando finalmente o percebe, Leniza já está demasiado envolvida pelo glamour da “vida de artista” para que um recuo seja possível: mora na rua do Riachuelo, frequenta outras cantoras, recebe cartas de fãs, tem sua imagem estampada nos jornais. A essa altura, Leniza já nada tem de ingênua; sabe o que precisa fazer para manter-se no patamar – e não pode recusar-se a fazê-lo.
A estrela subiu, mas a que preço? Eis o questionamento que ocupa o centro da obra, perpassada do início ao fim por um forte discurso moralizante. Ainda criança, morando numa pensão, via nus os homens que lá se hospedavam; adolescente, deixava-se bolinar pelos namorados. Todo o resto da história seria apenas a concretização desse destino que já se anunciava para a pequena Leniza: uma caminhada rumo à “perdição”. É representativa uma das cenas finais do livro: Leniza delirante ao lado da mãe que, embora atenta, trata-a com frieza, consumida pelo desgosto. O homem que vem visitar a enferma é despachado pela mãe, que sequer o conhece: para ela, o mero fato de ser um homem faz dele um símbolo de todos aqueles que cruzaram com sua filha no retorto caminho. Leniza, a sobrevivente, tem afinal a chance de redescobrir a vida após o périplo pelos infernos.
Seria injustiça atribuir todo esse moralismo a Marques Rebelo. O que legitima a onipresença do narrador no romance – que preenche todos os espaços, matizando tudo com seus juízos, não raro interrompendo as falas dos personagens, que cedem espaço à narração indireta – é o fato de traduzir expectativas e valores de toda uma sociedade: mais do que sonhar com o sucesso, cabia a Leniza, enquanto mulher, o dever de zelar por sua própria honra. É significativo o contraste entre a promiscuidade com que ela se depara no meio profissional, onde escasseia a moralidade, e o acolhimento que encontra no ambiente doméstico – onde a mãe, mesmo desgostosa, permanece ao seu lado. Esta a mensagem nas entrelinhas: se Leniza tivesse ficado em casa, quem sabe arranjado um marido, nada daquilo teria acontecido.
Ao fim, movida pelas lembranças da primeira comunhão, Leniza cogita visitar uma igreja; contudo, recua diante das portas fechadas – e de que adiantaria lá entrar, se “um vento ímpio” levara-lhe as orações da memória? A Leniza Máier, a estrela cadente, resta brilhar na obscura senda que lhe reservou o destino – por ter nascido pobre; mas, sobretudo, por ter nascido mulher.
* Doutorando em literatura comparada e autor de Esparsa erótica, livro de poemas.
20:30 - 03/09/2009
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